A jornalista Daiana Garbin, 34, esposa de Tiago Leifert e conhecida dos telejornais da rede Globo São Paulo, é aos olhos de amigos e familiares uma mulher linda e magra. Ela, porém, desde os 12 anos, tem uma dificuldade de enfrentar o espelho diariamente. Ver o seu corpo refletido tornou-se um problema, pois a imagem que tem de si não corresponde com aquilo que é na realidade. Ela se sente gorda, embora o seu índice de massa corporal esteja dentro do que é considerado normal pela medicina. Há cerca de um ano, ela foi diagnosticada com o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC).
Depois de um depoimento corajoso (vídeo acima), dado em seu canal do YouTube, “EuVejo”, o caso de Daiana Garbin ganhou repercussão e trouxe à luz a dismorfia da imagem, popularmente conhecida como doença da beleza. O primeiro episódio de descontentamento de Daiana se deu ainda criança. Aos 5 anos, sua mãe foi buscá-la no balé e se surpreendeu ao vê-la chorar, pois se achava a mais gordinha entre as meninas. Mais tarde, Diana chegou a fazer três lipoaspirações e tomar remédios para emagrecer, mas continuava insatisfeita com o corpo. “Eu sempre me vi maior do que sou. Me via mais alta e larga. Sentia que a minha caixa torácica era larga, os braços largos e grossos como de um homem, a cabeça grande. Sempre achei meu quadril largo e a bunda grande”, diz.
Segundo o psiquiatra Eduardo Aratangy, do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) é caracterizado por uma preocupação excessiva com a própria aparência e por uma tendência de enxergar uma pequena imperfeição de modo exagerado ou mesmo imaginar ter um defeito que não existe.
“O Transtorno Dismórfico Corporal é um quadro psiquiátrico. A pessoa passa a sofrer muito em decorrência de algum pequeno defeito corporal, podendo este ser até imaginário. O indivíduo passa a não aceitar uma parte do corpo, que pode ser a face, o nariz, o cabelo, alguma mancha ou marca, um membro do corpo como barriga e perna”, exemplifica.
Incidência
A patologia, segundo o especialista, atinge 0,5% da população geral. A incidência é maior nas mulheres e em pessoas com idades entre 20 e 25 anos. Entre as pessoas que procuram dermatologista, 15% apresentam dismorfia corporal, já os que recorrem aos cirurgiões plásticos, a recorrência é de 16%.
Parte dessa estatística, Daiana vem tentando vencer essa experiência de não aceitação do corpo. “Eu nunca tinha contado para ninguém. Tinha vergonha. Eu sempre falava que me achava gorda e as pessoas não costumam entender esse tipo de doença, por falta de informação. Foi quando percebi que era preciso falar sobre isso”, comenta a jornalista.
O cuidado com a aparência tem pautado cada dia mais a rotina das pessoas. Porém, é preciso estar atento à diferença entre ser vaidoso e ter um comportamento obsessivo em relação ao cuidado com o corpo. Para Aratangy, os transtornos mentais são exacerbações de características normais. “A tristeza é um sentimento normal. Quando é algo invasivo e determinante na vida, torna-se uma patologia. É o caso da depressão. É natural ter preocupação com o corpo, com a aparência, acordar um dia, olhar-se no espelho e não sentir-se bem. Quando essa preocupação se torna obsessiva, passa a ser uma doença”.
A modelo Camila Carolina Ferreira, 27, nascida em Cuiabá e radicada em Goiânia, nunca se sentiu satisfeita com o corpo. Quando ingressou no mundo da moda, aos 14 anos, a cobrança com a beleza passou a ser maior. “Antes de ser diagnosticada (com Transtorno Dismórfico Corporal), eu me sentia gorda e inadequada o tempo todo. As pessoas que conviviam comigo, principalmente no meu trabalho, diziam que eu estava muito magra, mas mesmo assim eu não conseguia me enxergar magra”, comenta.
Em decorrência da doença, Camila abandonou alguns hábitos comuns. Deixou de sair à noite, passou a evitar as pessoas e o convívio social, deixou de ir a lugares que fossem ter comida, como festas de aniversário. Abandonou também o uso de biquíni e roupas que marcassem ou mostrassem sua barriga. Embora tenha 1,72 m, a ex-modelo que já pesou 46 kg, e agora pesa 53 kg, é categórica ao dizer que não gosta de sua barriga.
Como observado por Aratangy, pacientes que têm esse transtorno apresentam retração social. O indivíduo deixa de viver e frequentemente tem sintomas depressivos. “Primeiramente, desenvolve uma preocupação com algum aspecto da sua aparência. A incapacidade de se desfazer desses pensamentos, a preocupação constante, faz com que não consigam desenvolver suas atividades normalmente”, expõe.
“Eu perdi alguns amigos e quase perdi meu namorado (um relacionamento de oito anos). Minha vida profissional também foi prejudicada, pois, por conta do tratamento e dos medicamentos, tive e tenho que me ausentar várias vezes do trabalho. Não perdi o emprego, mas senti que isso foi ruim para minha carreira”, revela Camila, profissional de relações internacionais. Ela foi diagnosticada no início de 2015 e, desde então, faz tratamento psiquiátrico aliado a medicamentos e acompanhamento de psicólogo e nutricionista. “Hoje me considero no meio do meu tratamento, me sinto bem, vejo o meu corpo bonito e magro”, completa.
Daiana Garbin dá seu depoimento
Ao expor o seu problema, a jornalista Daiana Garbin trouxe à tona a discussão sobre um assunto ainda pouco estudado – o Transtorno Dismórfico Corporal. Embora tenha trabalhado como repórter de TV, ela confessa que nunca gostou de se ver na telinha.
Depois de ser diagnosticada com o transtorno, ela começou a pesquisar sobre o tema e sentiu a necessidade de falar sobre isso. Em seu canal do YouTube, “Eu Vejo”, ela se dedica a trocar com o público relatos sobre suas experiências. Ela acredita que as pessoas estão vivendo um momento de grande exposição com as redes sociais e que isso é algo prejudicial. “As pessoas se comparam com as outras. Comparam as próprias vidas e o corpo que têm. E passam a se cobrar por aquilo”, exemplifica.
“Eu acho que a mídia contribui para que as mulheres se sintam aprisionadas de alguma maneira. As revistas de moda mostram modelos extremamente magras. A moda nos faz sentir fora do padrão. Eu acho que os estilistas e a indústria da moda deveriam usar modelos com o corpo da mulher brasileira. As marcas, se fizessem isso, com certeza venderiam muito mais”.
Para driblar a doença, ela cola no espelho do seu banheiro post-it com mensagens para elevar a sua autoestima. “Eu sempre chorava, insatisfeita com minha aparência. Jurei que nunca mais ia passar por isso. Eu leio as mensagens que colo no espelho todos os dias, sorrio para mim mesma. Isso tem me ajudado muito”.
A descoberta da doença veio com uma indagação de sua terapeuta, que costumava achar estranho a não aceitação de Daiana pelo seu corpo. Ela confrontou a jornalista com fotos suas e percebeu que nunca foi gorda. Outra técnica foi colocá-la para ocupar espaços que ela acredita que não poderia ocupar, por se ver maior do que realmente é.
“Eu faço acompanhamento com psicólogo uma vez por semana. Quando estou com uma questão mais forte, faço duas sessões por semana. Eu precisei ter coragem pra mostrar o meu sofrimento, para mostrar que todos nós temos fraquezas, somos vulneráveis”, comenta Daiana, que no momento está no processo de escrita de um livro sobre seu transtorno, resultado do conteúdo que vem produzindo para o seu canal do YouTube. A obra está prevista para ser lançada no início de 2017 pela editora Sextante.
Depois de perceber que o problema que tinha não era meramente excesso de vaidade, Daiana, que sempre teve uma relação difícil com a comida e o seu corpo, vem vencendo o descontentamento que tem de sua imagem. Em sua última matéria, para o telejornal “SPTV”, da rede Globo, que foi ao ar em abril deste ano, a jornalista conseguiu superar a vergonha em usar roupas que revelassem o seu corpo.
“Eu sempre tive vergonha de ir à praia. O máximo que faço é correr no calçadão com roupa de ginástica. Eu acho que evolui muito nessa questão. Eu tenho arriscado sair com roupas mais justas. No meu último dia como repórter da Globo, estava fazendo muito calor em São Paulo. Eu sai no vídeo da reportagem com uma blusa de manga curta. Isso foi uma vitória para mim. Há dois anos, jamais conseguiria fazer isso. A gente tem que vencer nossos medos e nossas vergonhas. Não precisamos de um corpo diferente, a gente precisa mudar a nossa mente. Comecei, primeiro, a entender que o problema estava na minha mente, e, segundo, que o corpo não é o mais importante”, conclui.
Padrão estético estimula distúrbio
Padrão estético estimula distúrbio
Ainda que um tema pouco estudado, a professora de psicologia da Universidade Veiga de Almeida (UVA), no Rio de Janeiro, Joana de Vilhena Novaes – organizadora do livro “Que Corpo É Este que Anda Sempre Comigo?” –, revela que o Transtorno Dismórfico Corporal vem crescendo nos últimos anos e é um distúrbio predominantemente feminino.
“Mesmo com todos os avanços conseguidos pelo feminismo, a sociedade, sobretudo no Brasil, onde a mulher é vista como um objeto, é falocêntrica. Existe uma super exploração do corpo da mulher pela mídia. Há uma opressão forte que incide sobre a mulher. A socialização da mulher, por exemplo, dá-se em torno da beleza. Diferentemente do homem, que se dá através do dinheiro. O nosso imaginário tem um olhar condescendente com o homem. A barriguinha lhe confere um charme. Essa condescendência a gente não vê com a mulher”, observa.
O culto à beleza e os padrões impostos foram determinantes para que a ex-modelo e analista de comércio exterior Camila Carolina Ferreira, 27, desenvolvesse o distúrbio. “Existe uma sociedade que nos fere ao colocar um padrão de beleza. A sociedade exige um padrão de magreza tão absurdo que nem algumas modelos conseguem se enquadrar, como foi no meu caso. Eu era cobrada o tempo todo a ficar cada vez mais magra, e nunca era suficiente para o mundo da moda”.
A preocupação excessiva da agente de saúde e catarinense de Brusque, Talita Sestrem Teske, 21, com a própria aparência, começou aos 10 anos. “A sociedade e a mídia, em si, cobram as mulheres serem bonitas. Isso mexe muito com o nosso psicológico, e nos faz acreditar que somos feias se não tivermos aquele biotipo”.
Há cerca de três anos, percebeu que o seu incômodo ultrapassava o limite comum e foi diagnosticada com Transtorno Dismórfico Corporal. “Antes eu não sabia que isso tinha um nome, só odiava a imagem que via no espelho”, expõe. Talita costuma se ver muito acima de seu peso e diz ter dificuldade de se enxergar bonita. “Fujo dos espelhos e de fotos. Se eu não me vejo, não me incomodo tanto. As pessoas acham que eu sou exagerada e que me vejo muito maior do que realmente sou”, conta.
Sinais
Para Joana de Vilhena Novaes, familiares e amigos têm de estar atentos aos sinais para identificar o transtorno. “Quando uma pessoa tem uma mudança de rotina significativa, em um curto espaço de tempo, e começa restringir a alimentação e ter uma perda da vida social, isso pode indicar que ela tenha desenvolvido o transtorno”, aponta.
Ao chegar ao trabalho, a enfermeira Fernanda Espinosa Pavulack, 31, natural de Pelotas, Rio Grande do Sul, costuma receber dos colegas palavras de encorajamento. “Fernandinha, você está muito magrinha”, dizem uns. Outros comentam: “Fernandinha, você está bem assim”. Porém, ela não se convence disso e se sente descontente com a sua imagem.
Ela usa roupas largas e grandes. Não se toca e não se olha no espelho. Também não anda de salto, pois diz se sentir grande e gorda. Arrumar-se e se maquiar são hábitos que não fazem parte da sua vida. Para ela, quanto mais desapercebida passar, melhor. “Eu tomo banho com a luz apagada para não ver meu corpo, não me toco no banho para não sentir minhas gorduras. Quando estou no claro, fecho os olhos e só abro quando estou vestida”, confidencia.
Fernanda, depois de ser internada, vem sendo acompanhada por nutricionista, psicólogo, médico clínico e psiquiatra. Na primeira vez em que foi para o hospital, em função da falta de se alimentar e emagrecimento excessivo, foi no ano 2000. “Eu cheguei a parar de menstruar, perdi cabelo, meu brilho, o controle da minha vida. Eu estava pálida, triste. Mas tudo bem, eu estava magra”, relembra ela.
Tratamento
O psiquiatra Eduardo Aratangy, do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, salienta que o tratamento para quem apresenta o Transtorno Dismórfico Corporal deve ser realizado em três linhas: o farmacológico, acompanhamento médico e a psicoterapia.
“O tratamento psicoterápico mais estudado é o cognitivo comportamental. Nesta terapia, de percepção corporal, o indivíduo aprenderá a lidar melhor com a sua imagem”, destaca. “Um ponto importante, a ser observado, é que as pessoas que apresentam dismorfia recorrem primeiro a cirurgiões plásticos e não procuram psiquiatras. O sofrimento dessas pessoas é algo real. Não é uma escolha, muito menos uma futilidade”, completa Aratangy.
A psicóloga Joana Novaes defende que, no âmbito da profilaxia, é preciso atuar conjuntamente com a educação. “Desde cedo, é preciso criar contrapontos e questionar os padrões de beleza, na escola e no ambiente familiar, para que as crianças criem consciência. É necessário trabalhar o empoderamento desde os primeiros anos. A medicina não consegue promover esse debate sem ter a mobilização de pais e professores. A partir da formação de uma massa crítica, a gente consegue criar uma frente a essa cultura da beleza”, defende Joana.
Textos relacionados: